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A coragem do amor que dura

Saiu hoje na Folha. Outro excelente texto!!! Escrevi um email ao Contardo Calligaris. Se ele me responder, junto com meus pensamentos e vira post aqui. Adoro esse tema. O que vcs acham?

A coragem do amor que dura

Quando amo, consigo olhar o mundo por duas janelas que não se confundem, a minha e a do ser amado

PROLONGANDO MINHAS observações da semana passada sobre "Quincas Berro d'Água", vários leitores e leitoras observaram que a literatura e o cinema, em geral, glorificam a coragem de quem, um belo dia, chuta o balde e vai embora.
E como ficam os que passam a vida inteira deslocando o balde para estancar as goteiras? Será que eles são todos covardes e acomodados?
É inegável: nossa cultura idealiza a ruptura, a aventura, a saída para o mar aberto. Em matéria amorosa, o momento que preferimos contar é a hora do apaixonamento.
Depois disso, gostamos de imaginar que "eles viveram felizes para sempre", mas sem entrar em detalhes que poderiam transformar a história numa farsa.
Uma boa solução, aliás, é que os amantes morram logo. O sumiço (de ambos ou de um dos dois) evita que a comédia da vida que levariam juntos contamine a apoteose do encontro inicial. Os amantes ideais são os que não duraram no tempo: Romeu e Julieta, o jovem Werther e Charlotte, Tristão e Isolda.
Concluir o quê? Que a coragem é sempre a de quem deixa a mornidão de seu conforto para se queimar num instante de paixão? Será que não pode haver coragem nos esforços para que o amor dure?
É óbvio que a duração não é um valor em si: uma relação pode durar a vida inteira e ser uma longa e insulsa experiência repetitiva, sem amor algum. Mas, inversamente, será que as paixões-relâmpago são amores? Enfim, seria útil dispor de uma definição do amor.
Justamente, li nestes dias um livro que me tocou, "Éloge de l'Amour" (elogio do amor, Flammarion 2009, ainda não traduzido para o português), de Alain Badiou; é a transcrição de uma breve entrevista do filósofo francês.
Nela, inevitavelmente, Badiou constata que, em nossa cultura, a visão dominante do amor é a de uma espécie de "heroísmo da fusão" dos amantes, que, uma vez consumidos por sua paixão, podem sair de cena (para não se tornar ridículos) ou sair do mundo e morrer (para se tornar sublimes).
Contra essa visão, Badiou define o amor mais como um percurso do que como um acontecimento: segundo ele, o amor precisa durar um tempo porque é "uma construção".
Confesso que fiquei com medo de que o filósofo nos propusesse amores tagarelas, em que os amantes não parariam de discutir a relação (claro, para construí-la). Por sorte, não se trata disso. Então, o que constroem os amantes?
Geralmente, explica Badiou, minha experiência do mundo é organizada por minha vontade de sobreviver e por meu interesse particular: vejo o mundo só de minha janela.
Certo, ao redor de mim, há muitos outros de quem gosto e aos quais reconheço o direito de também sobreviver e promover seus interesses.
Mas o fato de eu respeitar esses meus semelhantes não muda em nada meu ângulo de visão. É só quando amo que consigo olhar, ao mesmo tempo, por duas janelas que não se confundem, a minha e a de meu amado. A estranha experiência ótica faz com que os amantes reconstruam o mundo, enxergando coisas que ficam escondidas para quem só sabe olhar por uma janela.
Entende-se que o amor assim definido exija tempo. Quanto tempo? Um mês, um ano, uma vida, tanto faz. Consumir-se na paixão pode ser rápido, mas reinventar o mundo a dois é uma tarefa de fôlego.
O amor segundo Badiou, em suma, é uma aventura, mas que precisa ser obstinada: "Abandonar a empreitada ao primeiro obstáculo, à primeira divergência séria ou aos primeiros problemas é uma desfiguração do amor. Um amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, às vezes duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem".
Você aprecia a definição, mas a acha um pouco abstrata? Gostaria da história de um amor que dura e se obstina sem se tornar pesadelo ou farsa? Pois bem, acabo de ler um texto comovedor, bonito e capaz de ilustrar e explicar perfeitamente as palavras de Badiou.
Em "Amar o Que É: Um Casamento Transformado" (Objetiva), Alix Kates Shulman conta como ela e Scott, o marido, reinventaram o mundo, a dois, obstinadamente, depois de um acidente que precipitou Scott numa forma de demência.
Há momentos difíceis, sacrifícios e durezas, mas, curiosamente, o relato não chega nunca a ser triste porque se trata de uma extraordinária história de amor.

Frase....

Fiquei retumbando com isso ontem. É.
Não somos perfeitos, mas somos criaturas divinas, em busca do encontro da alma com a razão.

Espiando blogue alheio

A querida Dayana Monfardini ontem escreveu um post simples, com muita sensibilidade (algo que, por mais irônico que possa parecer, está me faltando). Reproduzo, com devidos créditos, um parágrafo do post e deixo o link aqui para vocês visitarem. Ela escreve pouco, mas escreve com muita um olhar sensível de quem vê as mazelas, não se deixou infectar por elas e ainda tem muita esperança.
Precisamos de uma vez por todas, entender que a gentileza gera gentileza, que o respeito gera respeito, que o amor gera amor e não o contrário. Reclamamos aos quatros cantos do mundo que não somos amados, que temos mais problemas que os demais, que a pessoa ao lado não sorri e nem diz bom dia, que infelizmente não temos sorte no amor, que o nosso jardim não é tão florido quanto o do vizinho, enfim, passamos a maior parte da vida reclamando do por que não somos felizes como merecíamos, afinal de contas, pagamos nossos impostos da mesma forma. Pois é... e a resposta está debaixo dos nossos olhos e sequer conseguimos abrí-los para compreender, não dá tempo; reclamamos antes de isso acontecer.

Carpe diem

Do blogue (que não é do Contardo Calligaris) mas cujo texto é de autoria dele. Compartilho o texto que me parece refletir muito da nossa atualidade.


Carpe diem, aproveite o momento
Quem vive plenamente não terá medo de morrer. Mas o que é viver plenamente?


ESTREIA AMANHÃ , Brasil afora, "Quincas Berro d'Água", de Sérgio Machado, inspirado num dos romances mais bonitos (e mais lidos) de Jorge Amado, "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água".

O filme é uma daquelas raríssimas obras que nos fazem rir e sorrir da vida, do mundo e de nós mesmos, enquanto, justamente, pensamos seriamente na vida, no mundo e em nós mesmos.
Esse milagre deve ser efeito do roteiro (do próprio Machado) e da atuação de um conjunto de atores que todos mereceriam ser mencionados, a começar por Paulo José, que é Quincas, vivo e morto (e não pense que encarnar um morto seja tarefa fácil).

Agora, nesse grupo extraordinário, quem rouba a cena é Mariana Ximenes, no papel de Vanda, a filha que Quincas abandonou quando deixou sua vida de funcionário "respeitável" e caiu na farra. Quase sem palavras, com delicadas e progressivas mudanças de seu olhar, Ximenes nos conta, de maneira inesquecível, o despertar nela dos genes paternos.

Enfim, meu jeito de agradecer à equipe que nos oferece esse filme foi anotar algumas reflexões que ele suscitou em mim.

1) Quase sempre, quando sonhamos em mudar de vida radicalmente, enxergamos esse ato como a conquista de uma alforria: seremos livres -dos pais ou, então, da mulher ou do marido que nos aprisionam. De fato, às vezes, os outros nos controlam e nos impedem de viver, mas não é frequente.

Em geral, nós os acusamos pela mesmice de nossa vida ("se nos livrássemos desses tiranos, poderíamos viver plenamente"), mas a tirania que nos oprime é a de nossa inércia e de nossa covardia.

2) Às vezes, num casal, as exigências triviais do parceiro são intoleráveis por parecerem absolutamente insignificantes: tire os pés da mesa, não espalhe o jornal pelo chão da sala nem a roupa pelo chão do quarto. Indignação: a morte nos espreita, e eis que alguém se preocupa com as migalhas que podem cair no sofá.

Como teria dito Sêneca, nós nascemos para coisas grandes demais para continuarmos escravos dessas picuinhas, não é?

Problema: uma vez chutado o pau da barraca, quem garante que a "grandeza" para a qual nascemos não se resuma em comer livremente amendoins na cama?

3) Quincas tem razão: só teme a morte quem não se permitiu viver, ou seja, quem viveu plenamente não tem medo de morrer.

Mas o que é uma vida plena? Será que é a vida de Quincas? A bebida e os amores? A fuga das responsabilidades domésticas?

Talvez o valor da farra de Quincas esteja, sobretudo, na liberdade de viver sem se importar com o julgamento dos outros, com a boa reputação. Para aproveitar a vida, antes de mais nada, não se preocupe com o olhar reprovador dos demais.

4) Reli a ode 1.11 de Horácio, onde está o famoso "carpe diem" (colha o dia). Horácio sugere que não apostemos nossas fichas no futuro, mas nos preocupemos com o agora, com o hoje.
Tudo bem, mas será que viver como se não houvesse amanhã significa necessariamente perder-se (ou encontrar-se) nos prazeres imediatos da carne? Não é nada óbvio. Um cristão poderia concordar com Horácio, entendendo o "carpe diem" assim: é preciso estar em paz com Deus hoje, agora, não amanhã.

5) Então, o que é viver plenamente: gozar, rezar, meditar, cultivar-se?

Talvez seja possível responder sem tomar partido.

Eis uma anedota da qual Quincas teria gostado. O rei da Itália, Vittorio Emanuele 2º, passeava a cavalo pelo campo de seu Piemonte nativo.

Chegou à fazendola de um camponês, que fez grande festa e o convidou à mesa.

Vittorio Emanuele elogiou o vinho do camponês, o qual comentou: "Isto não é nada. Sua Majestade deveria experimentar o de três anos atrás". O rei replicou: "E esse vinho de três anos atrás acabou?". "Não acabou, Majestade", respondeu o homem, "mas a gente guarda o que sobrou para as grandes ocasiões".

Pois é, quando Mefisto comprou a alma de Faust, ele impôs a seguinte condição: Faust viveria até o dia em que, diante da beleza do que ele estaria vivenciando, fosse levado a pedir que o átimo parasse. Quando isso acontecesse, ele morreria, seu tempo acabaria.

Há várias interpretações dessa passagem do "Faust", de Goethe (1, 699-706); uma delas é que Faust só poderia morrer uma vez que ele descobrisse o segredo da vida. E esse segredo é que, para viver plenamente, é preciso reconhecer que, com ou sem o rei sentado à mesa, com farra ou sem farra, na alegria ou na tristeza, cada momento presente é sempre uma grande ocasião.